quinta-feira, 23 de abril de 2009

Histórias escritas na cara - Cada avó é um livro de contos

Este é um livro que nos fala de histórias de vida que o tempo vai deixando gravadas nos rostos de cada um, das valiosas bibliotecas que são as avós, tantos são os livros que as páginas das suas vidas já escreveram e que estão prontos para ser lidos, contados, ouvidos…
Começa por nos contar que, duas vezes por ano, Clara e os pais iam para casa da avó materna, no Sul do país, num lugar com o nome curioso de Suspiros. “Clara mal conseguia controlar a emoção, sabia que quando regressasse de Suspiros ia sentir-se como se tivesse uma biblioteca dentro da cabeça, tantas eram as páginas da vida que a avó lhe contava”(p. 12).

Uma das histórias que Clara nunca se cansava de ouvir era a do nome da aldeia, para a qual havia duas versões. “Mas as histórias que Clara mais gostava de ouvir eram daquelas que estavam escritas no rosto da avó: por curtas ou compridas linhas junto aos olhos, perto da boca ou na testa…” (p.16) Gostava de ouvir a origem daquelas marcas que falavam de emoções, sentimentos, memórias agradáveis ou desagradáveis, alegres ou tristes…

Eu também gostei! São episódios breves, mas fascinantes. Daqueles que dizem mais pelas reflexões do que pelas palavras. Tocou-me, especialmente, o episódio associado à ruga na testa da avó. Porquê? Talvez porque, como disse Stendhal, “Um romance é como o arco de um violino, a caixa de ressonância é a alma do leitor.” E esta ruga fez vibrar intensamente a minha caixa de ressonância. Aquela ruga chamava-se Ernesto e falava de um terramoto que tinha havido no dia em que a avó fazia doze anos e a família, em vez da festa de “Parabéns”, começara a organizar meios para ajudar os mais afectados. A avó e as primas gémeas tinham ficado responsáveis por arranjar roupa, muitos tinham ficado, apenas, com a que traziam no corpo. “O frio estava a chegar e depois de o chão ter tremido iam tremer muitos dentes.” (p.23). O ajudante deste grupo era o Ernesto, um rapaz de nove anos, extremamente pobre. Incansável, sem nunca desistir, batia à porta das casas que ainda existiam e pedia mantas, casacos, calças, sapatos… (Quanta persistência, força, sensibilidade e solidariedade se descobre nos menos favorecidos!) Mas não havia roupa nem calçado suficiente para tanta gente, porém Ernesto não desanimava e dizia: “Menina, pé de pobre não tem número. E pobre não troca de roupa, a roupa é que troca de pobre. Vai primeiro para o irmão pobre, depois para o primo pobre, depois para o neto pobre, e assim por diante, até a roupa já não perceber se nasceu camisola ou cachecol”. E no meio daquela pobreza, o franzino Ernesto, sem nunca saber, ensinou-me uma lição valiosa: nós temos quase sempre mais do que aquilo de que precisamos.” E este excerto provocou em mim uma ressonância tão aguda que quase me magoava a alma, tal era a verdade que ecoava em vibrações prolongadas.

Mais à frente, uma expressão deixou-me deliciada pela criatividade e beleza estilística, fiquei a saboreá-la durante muito tempo e não resisto em partilhá-la convosco: “A Antonieta devia ter uns cinco anos, ainda não era cega e nunca mais me esqueço do seu comentário, um dia enquanto o Sol se punha: Já viste, mana, o Sol adormece no mar e as ondas são os cobertores.”

Outras rugas contaram as suas histórias e, no final, depois de fechar o livro, já sem palavras à frente dos olhos, continuei a ler histórias, aquelas cujo enredo brota das nossas meditações, das nossas vivências, das nossas conclusões, das nossas próprias rugas…

É um livro pequeno, escrito numa linguagem singela, mas bonita, que nos conta episódios curtos, de absorção fácil e rápida, contudo deixa-nos muito tempo a prolongar a leitura, a ouvir o eco, as vibrações das suas palavras…

Vou deixar-vos com um desses ecos.
“Cada avó é um livro de contos”.
Lídia Valadares

4 comentários:

Paula disse...

Fiquei muito curiosa em relação a este livro. Vou colocá-lo na minha lista de compras...

Abraços

Alice disse...

Parece interessante, até porque uma das minhas maiores diversões nas férias é ouvir as histórias que o meu avô conta. São momentos mágicos e que me fazem compreender melhor certas pessoas, situações e realidades. Gosto mesmo de uma boa história contada por um avô, ou por uma avó...
Beijinhos

Isabel Preto disse...

Este relato sobre o livro abriu-me o apetite para a Leitura, pois sou fascinada por histórias relacionadas com as vidas, com o ultrapassar problemas e dificuldades, uma luta constante, mas também recheada de boas lembranças, pois a vida é isso mesmo: uma luta, com um brilho de sonho à mistura, feita das coisas mais singelas e doces.

isilda disse...

Dizia Mia Couto que "Cada velho que morre é uma biblioteca que arde", aqui aplica-se inteiramente e concordo contigo, Lídia. Sem se conhecer e aprender a sabedoria dos mais velhos, dos mais experientes, sem ouvirmos os conselhos de quem já viveu alguns anos, algumas experiências ou sofreu, nehum ser humano conseguirá vencer o mundo nem sobreviver no meio das agruras que o esperam. É com os avós, com os pais, com as madrinhas, com os tios e outras pessoas que nos acompanham, que o diálogo e a leitura deveriam florescer.
Foi um bom momento de partilha deste livro e esperemos que faça eco.

Isilda Lourenço Afonso