
O gatinho foi ganhando mais confiança e coragem e, um dia, não resistindo à atracção, passou para o lado de lá, “onde a noite se enrosca a dormir”. Quando “ousou despersianar os olhos” (notem como esta expressão empobrece o sentido da sinónima “abrir os olhos”) e viu que tudo era preto, inclusive ele, desatou a chorar, aflito e amargurado. Depois de um encantador diálogo entre o gatinho e o escuro, que mais parecia um desfile de queixas sobre as suas sortes e condições, apareceu a mãe do gatinho. O escuro lamentou-se que era feio e que todos os meninos tinham medo dele. A Dona Gata consolou-o, argumentando que os meninos não sabiam que “o escuro só existe é dentro de nós”. “Dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro só mora quem lá inventamos.” “Não é você que mete medo. Somos nós que enchemos o escuro com nossos medos” – diz a gata ao escuro. Este diálogo encantador, construído de uma forma aparentemente singela, ilusoriamente pueril, mas incontestavelmente soberba, conduz-nos a um inevitável exercício de introspecção. Este momento magnífico tem o condão de nos fazer dialogar com as nossas vivências, de nos fazer reflectir e ler o mundo!
Continuem a ler o conto e deliciem-se com a beleza das personificações, a excelência das metáforas, a criatividade dos neologismos, a singularidade da escrita e a arte que está presente ao longo de todo o texto…
E vou terminar este comentário, partilhando convosco algumas reflexões que um artigo da revista “Notícias magazine”, de 19 de Abril, 2009, intitulado “O livreiro que queria ser pirata”, de Fernanda Pratas, me suscitou. Tinha como base uma entrevista realizada a Pep Duran, catalão, com 64 anos, formado em engenharia electrónica, mas que se tinha feito livreiro, terapeuta e contador de histórias. Tinha-se especializado em ler álbuns ilustrados ao público infantil e também aos adultos. Considera este entrevistado que “As palavras lidas, ou contadas, esclarecem o nosso viver o mundo”. E é na qualidade de livreiro que afirma que “cada pessoa encontra os seus próprios livros”. Contudo, também pensa que, num universo de tantos, nem sempre é fácil descobrir os que nos interessam e, ao livreiro, compete acompanhar cada leitor nessa descoberta.
Pois eu penso que também nós, professores, pais, podemos desempenhar um papel muito importante no acompanhamento dos nossos alunos/filhos, no âmbito dessa descoberta.
E, já agora, seria interessante reflectirmos sobre aquilo que nos leva a encontrar os nossos próprios livros. Creio que pode haver múltiplas razões: comentários, apreciações, críticas, partilhas, recomendações…
E, já agora, seria interessante reflectirmos sobre aquilo que nos leva a encontrar os nossos próprios livros. Creio que pode haver múltiplas razões: comentários, apreciações, críticas, partilhas, recomendações…
No caso de Mia Couto, quem me seduziu para a leitura deste escritor foi o colega e amigo António Martins, já atrás referenciado, que em muito contribuiu para a minha descoberta e apreço deste autor. Também não posso deixar de mencionar a colega e amiga Isilda Afonso, que me deu a conhecer “Os sete sapatos sujos”que Mia Couto, numa magnífica intervenção no ISCTEM, considerou que precisávamos de descalçar à soleira da porta da modernidade. Segundo o mesmo afirmou, escolheu sete, pois é um número mágico, mas haveria muitos mais. Numa belíssima metáfora, Mia Couto refere-se aos defeitos, às vicissitudes, aos preconceitos da época actual e à urgência de os deixar à porta, de mudar de atitude, para se conquistar uma condição melhor. Aqui e mais uma vez, não esqueceu a realidade africana, a visão crítica para dentro do seu país. Vou deixar-vos com algumas expressões que seleccionei, da parte final da sua intervenção, e que julgo serem um bom mote de reflexão:
“A razão dos nossos actuais e futuros fracassos mora também dentro de nós. Mas a força de superarmos a nossa condição histórica também reside dentro de nós.” (…) “Teremos mais e mais orgulho em sermos quem somos: moçambicanos construtores de um tempo e de um lugar onde nascemos todos os dias. É por isso que vale a pena aceitarmos descalçar não só os sete mas todos os sapatos que atrasam a nossa marcha colectiva.” (Mia Couto, Oração de Sapiência, na abertura do ano lectivo no ISCTEM)
Lídia Valadares
Lídia Valadares
3 comentários:
Que óptimo regresso à Floresta das Leituras. vai ser mais um livro para eu ler com a Carol... pode ser que depois ela queira fazer o resumo. Também gostei do termo "pirilampiscavam"...
Vou registar, para ler com a minha filhota, achei uma boa sugestão. Obrigada pela dica.
As paragens por onde andaste não te cansaram! As pessoas que gostam de cultura, essencialmente de leitura, não param nunca. Tu és um bom exemplo.
Eu já tenho esta obra há muito tempo. Li-a e também gostei imenso. Não fosse o Mia a escrevê-la de forma tão original!
Os termos recriados neta história acho-os muito adequados a alunos ainda muito novos e que permitem motivá-los não só à leitura como também a imaginar outras narrativas, seguindo esta como exemplo. Todos sabemos que ninguém cria do nada e os nossos filhos e alunos necessitam de modelos, de referências. A literatura do Mia é uma base excelente para mostrar aos mais jovens que a literatura, ou seja, escrever, é um acto pessoal, original, nosso.
Não há que recear este tipo de leitura/escrita. Estamos todos a precisar de sair do rame-rame que muitas vezes nos indicam os modelos tradicionais e clássicos da leitura e da escrita para crianças.
Coragem! O mundo faz-se de mudanças e este escritor, bem explorado e explicado, seduz facilmente crianças e jovens. Além disso, permite-nos alargar horizontes a quem ainda não conhece a alma africana (que não está muito distante da nossa).
Obrigada pela explanação e pela motivação.
Isilda Lourenço Afonso
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